Referências

Foi a partir de uma conversa informal com uma escritora que percebi como costumo atuar de forma empírica tanto no campo artístico quanto educacional.
A autora me pediu que contasse casos de alunos meus para um livro sobre desenvolvimento criativo que ela estava produzindo.
Trouxe então um caso ocorrido em 2007. Era uma aluna adolescente que constantemente me provocava, dizendo desacreditar na importância da arte. Durante algumas aulas busquei vários caminhos que suscitassem questões para ela pensar, até um dia em que acabei escolhendo um caminho pouco convencional.
A aluna colocou num cavalete que eu costumo usar para que os alunos observem as produções, um desenho que ela fez nos primeiros 5 minutos de aula, dizendo:
– Ok professor, se isso tem linguagem também tem símbolo, certo?
– Certo.
Deu um risinho e disse:
– Me diz então o que você vê aí ?

Era uma aluna muito inteligente, seu desenho bem simples, figurativo, feito a lápis e sem uso de qualquer recurso, apesar de estarem disponíveis vários materiais no atelier. Percebia-se uma grafia imatura para a idade cronológica e alguns elementos inclusive mais perto do estereótipo do que das soluções pessoais.
No centro do papel, uma casinha típica feita com régua e grafite forte, construída pelo encontro de duas formas geométricas: um quadrado e um triângulo.
À volta da casinha fechada nenhum elemento, somente mais para a borda do papel havia alguns elementos à mão livre com um grafite bem suave. Eram pássaros, flores, nuvens e uma borboleta.

Respondi então:
– Primeiro, vamos lembrar algo que a gente vem falando aqui nas nossas aulas sobre as várias interpretações que podem estar contidas numa mesma obra, ou seja: não é uma questão de acerto o que podemos desejar quando se faz ou se olha a arte. Tenho a impressão de que você está querendo acertar um alvo. Arte não é exercício de objetividade, lembra?
Segundo: Não sei qual foi o seu real envolvimento durante o processo de execução desse desenho. Me preocupa se tratar de uma simples produção de provas para você confirmar a sua opinião sobre a desvalia da arte. Mas vamos lá, o que eu vou dizer aqui pode não fazer nenhum sentido pra você. Se for assim, basta guardar o seu trabalho e, se preferir, pode até jogar as minhas palavras no lixo.
Sabe, apesar do seu desprezo pelo o que você produziu, tem uma coisa nessa sua casa que me intriga e interessa. Nesses tanto tempo que trabalho, tenho sempre muito respeito pelas produções artísticas em geral, mais ainda pelo que é colocado no centro do papel ou da tela… Não importa o que. pode ser algo desenhado, uma mancha ou um vazio. Aquele lugar bem ali, no centro, costuma ser reservado para o “eu” mais essencial ou desejado. No seu caso, você reservou o centro do papel para uma casinha geométrica, precisa, concreta, racional e fechada.
Os sonhos, o imaginário, as fantasias, a criatividade e, claro: a arte, você coloca todos distantes, à margem. A suavidade do lápis está lá, nesse mundo distante. Com o lápis duro, rígido, talvez até protetor, parece que você se contorna.
Essa interpretação é minha, mas é com você, com a sua linguagem artística que eu converso. Talvez seja uma conversa comigo mesmo, quem sabe? Mas foi você, ou a a sua arte produzida em 5 minutos que provocou tudo isso.

– OK, está bom, chega. Disse a aluna guardando seu desenho.

Terminado o relato, a minha entrevistadora disse:
– Bem interessante Helio! Mas, baseado em que ou em quem você fez esses comentários?
Foi quando me dei conta do meu empirismo.
Sem dúvida, referenciados mais facilmente sabemos de onde partimos e às vezes até onde queremos chegar. Talvez por isso muitos palestrantes iniciam os trabalhos por alguma citação assinada por um pensador; mesmo assim podem se perder facilmente e não chegarem a lugar algum.
Se na minha juventude as dúvidas me atormentavam, com o tempo elas se tornaram minhas mentoras, meus maiores estímulos para ousar na arte e na educação.
Talvez seja para amenizar a minha frágil formação acadêmica, mas penso que uma certa dose de ignorância pode ser libertadora.
Quase um ano depois o livro foi lançado com uma parte reservada para o meu trabalho, mas esse caso não fez parte. Provavelmente por falta de referências que o legitimassem.

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